Sobre o ‘acordo Google Books’, ou de porque precisamos atualizar a lei de direito autoral
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Sobre o ‘acordo Google Books’, ou de porque precisamos atualizar a lei de direito autoral


Entre as melhores apresentações que vi nos últimos tempos está a do Alexandre Pesserl (@pesserl), que é integrante do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Informação da UFSC — a turma afiada do Prof. Marcos Wachowicz –, e autor de ‘A Biblioteca total: Google Book Search e obras órfãs‘ em parceria com Marciele Bernardes. A apresentação ocorreu no Workshop sobre Direito do Autor promovido pela biblioteca Brasiliana-USP no final do ano passado.

O Alexandre abordou um dos temas mais desafiantes do universo digital: o ‘acordo Google Books’ (Google Books Settlement). O assunto é intrincado por vários motivos, a começar pela complexidade do acordo em si. Mas difícil mesmo é avaliar o mérito da questão, pois o mencionado acerto entre o Google e a Author’s Guild viabiliza o desembaraço jurídico que garante a imediata disponibilização na rede de todas as obras órfãs, que são aquelas que continuam sujeitas ao regime de proteção autoral mas que seus titulares não são localizáveis. Estamos falando da possibilidade de livre acesso a 75% do conteúdo que está sendo ou será digitalizado nas bibliotecas de todo o mundo — o chamado ‘buraco negro do século 20′.

Jamie Boyle, o pai da ecologia digital, conta que em um tempo distante… tínhamos 3 situações. O tempo de proteção das obras era curto, o registro para proteção da obra tinha que ser renovado (o que a maioria não fazia), e o tal registro nem chegava a existir a não ser que fosse solicitado. Hoje tudo é bem diferente. Os períodos de proteção automática a direitos autorais podem durar mais de 100 anos. O resultado? As grandes bibliotecas do mundo estão abarrotadas de livros que: (1) ainda estão protegidos, (2) estão comercialmente indisponíveis e, na maioria dos casos, (3) são obras órfãs sem qualquer detentor de direitos com quem negociar.

Por um lado, o fato de uma ação de classe (class action) entre duas pessoas jurídicas, no caso, entre uma empresa de tecnologia (o Google) e uma espécie de sindicato de escritores (a Author’s Guild), ambos baseados nos EUA, estabelecer os termos que definem o acesso à parte tão relevante da produção global de cultura e conhecimento causa estranheza e preocupação. Questões sérias de privacidade, o risco do monopólio, e a ausência de qualquer perspectiva de fiscalização ou normatização pública sobre o serviço de busca e disponibilização dos conteúdos torna o cenário extremamente preocupante.

Por outro lado, é bem difícil ser contra um arranjo que pode, de repente, fazer ressurgir este respositório monumental de conhecimento e cultura, tudo indexado por palavra, ao alcance de um click. Trata-se de uma vitória da civilização, da democratização do acesso à cultura. Todo e qualquer cidadão teria a possibilidade de não apenas encontrar obras cuja existência desconhecia, mas de também descobrir em quais bibliotecas a obra está disponível ou acessá-las diretamente de forma remota.

O @Pesserl explica que nos termos do acordo, 20% de qualquer trabalho cujo titular não eleja estar fora do arranjo (opt-out) estará disponível gratuitamente; o acesso completo poderá ser adquirido. O acordo demanda ainda a criação de um órgão de registro, o Books Rights Registry, a ser operado por uma organização não governamental formada por membros das editoras e representantes dos autores.

O arranjo dá aos autores um local para identificar-se e receber pagamentos pelo uso dos livros feito pelo Google, incluindo uma parcela da renda das vendas e da publicidade. Isso é benéfico tanto para autores de livros hoje “órfãos” quanto para aqueles que querem utilizá-los: providencia um modo dos autores “desorfanarem” suas obras e um modo para os usuários localizarem tais titulares previamente desconhecidos para obtenção das licenças para uso de tais obras.

Em outra perspectiva, o uso criativo das novas potencialidades de pesquisa pode permitir novas descobertas acadêmicas. O benefício marginal será maior para pesquisadores sem acesso direto às grandes bibliotecas ou que não moram em grandes cidades, permitindo uma geração direta de maior conhecimento pela maior circulação da informação.

Para os editores, trata-se da criação de um novo mercado com potencial ainda difícil de quantificar. Mas o posicionamento central e excessivamente dominante do Google no arranjo segue sendo algo incômodo para os demais atores do processo.

Neste ponto o Alexandre coloca bem a questão: Porque é que foi necessário ‘um acordo entre entidades privadas diretamente interessadas – de um lado, o gigante de buscas, de outro representantes de uma indústria em rápida transição – para cortar o nó górdio deste gigantesco patrimônio cultural que estava se perdendo?’

O acordo ‘Google Books’ representa, de fato, oportunidade para uma ampla reflexão sobre o papel do estado, e sobre a eficácia do modo tradicional de se fazer política pública nesta fase do capitalismo pós-industrial, globalizado e conectado.

O estado, que deveria ser o principal interessado na manutenção dos commons, os “baldios” compreendidos no patrimônio cultural comum que é a matéria-prima do saber e do conhecimento, quedou-se inerte, presa do discurso maximalista de proteção
A Biblioteca total: Google Book Search e obras órfãs – Alexandre Pesserl e Marciele Bernardes

No decorrer do processo, a movimentação do Google no setor levantou a ira de alguns críticos influentes, e neste momento o acordo está sob análise no Departamento de Justiça americano. O Google se defende dizendo que não pode ser acusado de ter o monopólio sobre um mercado (o das obras órfãs) que ainda não existe. Aproveita ainda para cutucar o estado, afirmando que todos os problemas estariam resolvidos se tivéssemos uma lei autoral racional, que provesse as garantias necessárias para o uso comercial das obras órfãs.

Recentemente a Open Book Alliance, em uma carta ao congresso americano, manifestou esperança de que o DOJ irá bloquear o acordo, e indicou a necessidade de um processo de discussão aberto com os legisladores, enfatizando a importância de um ‘Guardião Público’ para o banco de dados. Também instou o Google a interromper o projeto, e se juntar na formulação de um esforço colaborativo com os demais atores do setor para a digitalização dos acervos.

Para o buraco negro do século 20, realmente existem algumas soluções alternativas possíveis. Mas.. e se os críticos do acordo vencerem, e continuarmos neste impasse? Não está na hora de consertar a nossa lei autoral para que este tipo de questão deixe de acontecer?

O Prof. Boyle, em um comentário recente, concluiu que se não somos capazes enquanto sociedade de operar a urgente e necessária reforma em nossos marcos regulatórios de direito autoral, então é melhor permitir que o Google opere o ‘plano b’. Afinal, tal cenário é infinitamente melhor do que permanecer no buraco negro do século 20.

Vale conferir os slides da apresentação do Alexandre Pesserl, que falam por si.




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